"VAR no Brasil é usado além da conta", afirma analista de arbitragem
Antes do fim de semana em que seriam disputadas a final do terceiro lugar e a grande decisão, que consagraria a França diante da surpresa croata como vencedora, Gianni Infantino, presidente da FIFA, concluiu:
“Quando você vai no dicionário e procura a palavra ‘progresso’, significa melhorar em comparação ao passado. Isso é progresso, isso é melhor que o passado. O VAR não está mudando o futebol, ele está limpando o futebol, está fazendo o jogo mais transparente e está fazendo os árbitros tomarem as decisões corretas.
"De todas as decisões tomadas, 95% estavam corretas. Graças ao VAR, aumentamos para 99,32% até agora. Não é 100%, mas é 99,32%, o que é melhor que 95%", disse Infantino.
O mandatário máximo do futebol mundial prosseguiu: “O VAR dá a possibilidade de checar duas vezes. Nas decisões claras, não há interpretação. O gol em impedimento está finalizado. Não veremos mais um gol marcado em impedimento na era do VAR.
"Ou você está impedido ou não. As decisões são mais claras. Tivemos zero cartões vermelhos por violência. Agora todos sabem que o que você fizer, uma câmera vai pegar. Foi uma competição muito mais justa graças ao VAR”, finalizou o presidente da FIFA.
História diferente em solo brasileiro
Passados pouco mais de cinco anos, as frases de Infantino parecem ter envelhecido rápido, ou muito rápido, se formos fazer o recorte do uso do VAR em gramados brasileiros.
Naquela Copa, dados oficiais da FIFA indicam que foram feitas 20 revisões durante as 64 partidas, ou uma revisão a cada 3,2 jogos. Houve 17 decisões alteradas de erradas para certas.
Enquanto isso, no Brasil, revela um levantamento feito pelo Flashscore, considerando 10 rodadas, ou 100 jogos do Campeonato Brasileiro da Série A (entre a 26ª e a 35ª), a realidade é diferente. Estão registradas no site da CBF 35 alterações, ou 2,8 análises por jogo, índice parecido ao russo.
A questão é a discrepância registrada entre casos em que o árbitro de vídeo e o árbitro de campo concordaram. Analisando as 35 chamadas do VAR no Brasil, em 46% das vezes (16 ocasiões), a decisão de campo foi mantida. Nas outras 19 vezes (54%), ocorreu mudança da decisão inicial. A questão dos acertos dos árbitros, dita por Infantino, não se encaixa aqui.
“Não tem mais a mínima interferência, quem investe no VAR quer usar”, afirma Sálvio Spinola, ex-árbitro de futebol, que hoje atua como analista de arbitragem.
A consideração diz respeito ao que havia sido anunciado pela FIFA em Moscou. Na origem, a chegada do VAR seria apenas para corrigir erros crassos de arbitragem e não servir como uma espécie de segunda chance em todo e qualquer lance.
Menos mudanças de decisões na Premier League
Outro parâmetro atual que pode ser usado é comparar o Brasil com as grandes ligas do mundo, como a inglesa. Na Premier League, onde o assunto VAR também é recheado de polêmicas, os números mostram outra realidade.
De acordo com a ESPN britânica, que mantém um rigoroso critério de acompanhamento do uso da ferramenta rodada a rodada, os VARs britânicos entraram em ação 31 vezes entre as rodadas 4 e 13 da atual temporada. Ou seja, também em 100 jogos.
Mas, no caso inglês, assim como ocorreu na Copa do Mundo, a diferença de critério se mostrou menor. Apenas uma única mudança ocorreu em todas as intervenções. Nas outras 30, o que havia sido marcado em campo permaneceu.
“No Brasil, o VAR corrige a deficiência na formação do árbitro. Na Inglaterra, o investimento em árbitro é pesado, lá eles não substituíram o árbitro de campo pelo VAR. Aqui sim, já que, na função de VAR, qualquer um pode apitar. Veja quantos árbitros despreparados e sem rodagem apitaram a Série A”, ratifica Spínola, que apitou finais de campeonatos paulistas, da Copa do Brasil (2011) e da Copa América (2011).
Expulsões e pênaltis mudam com alguma frequência
A análise dos números do Brasil, além de mostrar que os árbitros de vídeo mudam mais a decisão do que mantém, também gera mudanças importantes tanto na aplicação de cartões vermelhos quanto na marcação de penalidades máximas.
Das 35 intervenções, 16 foram em relação a colocar ou não a bola na marca da cal. E em sete vezes, a decisão inicial, tomada ao vivo em campo, teve outro destino, após o dono do apito ter sido chamado ao pé do ouvido para conferir o replay no monitor.
Mas o maior índice de mudanças ocorre no momento de mandar o jogador mais cedo para o chuveiro. Foram oito análises sobre cartões vermelhos. Em seis, o que não era expulsão acabou virando motivo incontestável para um dos times ficar com um jogador a menos.
“Está claro que a ferramenta aqui é usada além da conta. O VAR surgiu para corrigir o que o árbitro humano não consegue ver. Aqui não, ele funciona de outra forma”, salienta Spínola.
CBF se defende
Oficialmente, a CBF não admite problemas estruturais no uso da ferramenta do VAR. É conhecida do público do futebol as resenhas pós-rodadas, onde o também ex-árbitro Wilson Seneme, presidente da Comissão de Arbitragem da CBF (ele também já ocupou o mesmo cargo na CONMEBOL), dá sua opinião sobre os lances. A admissão de erro claro ocorre poucas vezes.
A seu favor, a entidade que administra o futebol brasileiro diz que usa uma tecnologia de ponta, a mesma utilizada pela FIFA e por grandes ligas do mundo, até de outros esportes como a NBA. No início deste ano, inclusive, se mudou como as linhas de impedimento dos defensores e dos atacantes são analisadas, evitando a sobreposição.
A questão que resta, como a ferramenta de fato veio para ficar, é se a cultura do VAR no Brasil vai ser usada como uma espécie de replay pelos árbitros em campo ou vai se caminhar para uma intervenção mais cirúrgica, como era a proposta desde o começo, lá na Rússia, como os discursos da alta cúpula da FIFA anunciavam.
E, segundo a própria intervenção do VAR, a ferramenta, que é viva, ainda vai passar por mais mudanças.