Clubes de sócios X capital privado das SAF's: futebol argentino vive cabo de guerra
Torcedor do San Lorenzo "desde que me lembro", Gabriel Nicosia visita as instalações do clube centenário em Boedo, um bairro da classe trabalhadora de Buenos Aires, várias vezes por semana para tomar um café, nadar na piscina ou suar na academia.
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"Vir aqui significa encontrar meus amigos do bairro, é um pilar fundamental da vida cotidiana", explica o contador de 50 anos, um dos 80.000 sócios do San Lorenzo (para um estádio com capacidade para 48.000 pessoas).
Os membros ainda desempenham um papel social e oferecem 300 bolsas de estudo a jovens da comunidade vizinha para que possam usar as instalações do clube, a poucos passos do gramado onde os jogadores milionários treinam. Ser sócio-torcedor também é ter voz ativa, já que a mensalidade de 22 mil pesos (R$126,50) lhes dá o direito de votar nas eleições da diretoria.
A relação próxima com os times e os "valores sociais" que fazem dos argentinos um dos torcedores mais fervorosos do mundo, estão em perigo, de acordo com Gabriel, após a chegada das Sociedade Anônimas do Futebol (SAFs). Essas empresas, até agora, são proibidas na liga argentina, e os clubes são associações sem fins lucrativos.
O modelo europeu
A proibição não agrada ao presidente Javier Milei, um grande defensor da desregulamentação em todas as esferas da sociedade. Por isso, o chefe da Casa Rosada defende uma mudança no futebol, em nome da "liberdade" dos clubes de se abrirem ao capital estrangeiro e crescerem, seguindo o modelo dos clubes europeus.
Durante a campanha presidencial de 2023, Milei usou de exemplo o Boca Juniors, do qual é torcedor.
"Quem se importa quem é o proprietário se você vencer o River Plate por 5 a 0 e ganhar o Mundial de Clubes? Ou você prefere continuar a viver na miséria que é o futebol argentino, que está piorando a cada dia?", disse.
Os comentários do presidente atraíram a ira dos clubes, até mesmo o Boca. "Nosso clube pertence ao seu povo, seus membros e seus parceiros, que o tornam maior a cada dia", declarou o time.
Batendo o pé
Mas o governo insiste. Em agosto, um decreto ordenou que a Associação de Futebol Argentina (AFA) adaptasse suas regras dentro de um ano para que os clubes que se tornassem empresas privadas pudessem participar "de todas as competições em que estavam envolvidos sob sua estrutura jurídica anterior".
O presidente da AFA, Claudio Tapia, que ganhou a Copa do Mundo em 2022 e dois títulos da Copa América (2021, 2024), não escondeu sua oposição às SAF's: "Não é o nosso modelo de futebol", afirmou;
A reeleição em outubro de Tapia para um mandato de quatro anos soa como um desafio para o executivo. A ameaça que paira sobre o futebol hermano não é nova na Argentina. O ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) já tinha tentado, sem sucesso, uma mudança no regulamento.
Também não é exclusiva. No Brasil, a lei que aprovou a criação das Sociedades Anônimas foi aprovada em 2021 e, desde então, alguns clubes adotaram o modelo - como os finalistas da Libertadores, Botafogo e Atlético Mineiro.
Por um lado, há a tentação de poder crescer - em termos de número de funcionários e instalações - e de colocar os clubes em uma base financeira sólida, já que as contribuições dos sócios "não são suficientes", admite o diretor do San Lorenzo, Martin Cigna. Sem os direitos de TV e as transferências, o clube "acabaria com um déficit de um milhão de dólares".
Bola em jogo
Por outro lado, há o temor de que os investidores abondonem o racioncínio de investir no clube e "fechem o que não dá dinheiro, que é a lógica comercial (...) e fiquem com o valor agregado", analisa a socióloga esportiva Veronica Moreira.
Por enquanto, a bola está no campo. Em setembro, a Justiça, acionada pela AFA, determinou a suspensão do decreto de agosto até a decisão final sobre a medida. O presidente apelou e questionou a jurisdição do juiz. Milei recentemente ameaçou investigar irregularidades na administração da AFA e comparou a direção a "Venezuela e Maduro".
De acordo com uma pesquisa do think-tank esportivo Tactica, 60,2% dos argentinos interessados em futebol são contra a mudança para uma SAF. Mas a ideia não tem apoio unânime. O presidente de outro clube histórico, o Estudiantes, o ex-jogador Juan Sebastián Verón, disse que o clube estava se preparando para ser um sistema híbrido que combina "sócios e privado".