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O dilema do futebol russo, preso entre FIFA, UEFA e AFC

André Guerra
O dilema do futebol russo, preso entre FIFA, UEFA e AFC
O dilema do futebol russo, preso entre FIFA, UEFA e AFCRFU
A invasão da Ucrânia fez a FIFA suspender a Rússia das competições internacionais de seleções e clubes. Com o veto, o país passou a considerar uma mudança da UEFA para a Confederação Asiática (AFC). Para entender melhor o assunto, o Flashscore conversou com Joel Amorim, tradutor e professor, apaixonado pelo futebol russo e colaborador habitual de publicações esportivas com prévias do Campeonato Russo.

Depois de adiar a decisão no início da semana passada, a União de Futebol da Rússia (RFU) declarou na última sexta-feira (30) a intenção de permanecer na UEFA, mas deixou aberta a possibilidade de se mudar para a AFC. Os russos, juntamente com a UEFA e a FIFA, criaram um grupo de trabalho para explorar as possibilidades de se manter competindo na Europa.

"A decisão (de sexta) mostra que há uma vontade da Rússia em continuar na UEFA. Aleksandr Dyukov (presidente da RFU) afirmou que a maioria dos membros do Comitê Executivo optou por resolver o impasse atual em conjunto com a UEFA, a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional (COI). A RFU tem três meses para resolver o problema", disse o especialista em futebol russo.

Aleksandr Dyukov é presidente da RFU, CEO da Gazprom e ex-presidente do Zenit
Aleksandr Dyukov é presidente da RFU, CEO da Gazprom e ex-presidente do ZenitRFU

Para Joel Amorim, trata-se de um "caso bastante sensível e complicado", em que é difícil fazer "futurologia". No início da semana, tudo indicava a adesão russa à AFC, segundo as palavras de Dyukov, mas o revés de sexta-feira bagunçou o cenário. Até porque "há muitas posições contra e a favor" dentro do país.

"Caso a resposta ocidental continue sendo negativa, acredito que a Rússia pondere a mudança para a AFC. No fundo, a decisão foi um pouco ao encontro daquela que foi, desde cedo, a vontade da RFU: ficar na UEFA. A decisão da FIFA tem contornos políticos, vamos ver até quando os interventores vão continuar permitindo que a política se misture e condicione o futebol", prosseguiu.

Autodidata na língua russa, o português de 41 anos concluiu recentemente o nível A1 — com o objetivo de chegar ao A2 —, e tem a facilidade de chegar a páginas e publicações russas, e aproveita para contar histórias na sua página ou nas redes sociais. Entre as colaborações de Amorim destacam-se o WhoScored e o Tactical Room.

Indecisão e confusão

Sobre a possível mudança de confederações, o tradutor citou uma confusão por parte dos russos. 

"Não está muito bem explicado, as pessoas não têm noção da burocracia que esta mudança envolve. Há dois lados: a posição de que "vale mais ir para a Ásia e poder jogar" e a de que "essa mudança é um passo atrás". Acredito que dentro do Comitê Executivo da RFU ou da própria RFU as pessoas não têm noção do que acarreta a mudança", explica o especialista em futebol russo.

Ex-jogador Valery Karpin acumula cargos de treinador do Rostov e da seleção russa
Ex-jogador Valery Karpin acumula cargos de treinador do Rostov e da seleção russaRFU

A questão principal é se a FIFA vai ou não interromper a suspensão imposta a atletas, clubes e seleções da Rússia e da Bielorrússia. Mesmo que a mudança ocorra, se a suspensão se mantiver em vigor "não adianta de grande coisa" e não tem qualquer vantagem.

"Se a RFU tem uma ideia concebida para uma mudança, é conveniente que já tenha tratado de falar com as partes envolvidas. Convém já terem o aval da FIFA e a certeza de que essa mudança será aceita pelo Comitê Executivo da AFC e pelos países-membros. Neste momento, das consultas que foram feitas, entre os 47 membros da AFC há alguns que são contra. Da parte da AFC, penso que não haverá problema porque as decisões são aprovadas por uma maioria simples no Comitê Executivo. Dessa parte a mudança está quase garantida, agora da parte da FIFA...".

Se o adiamento de terça-feira foi "curioso", a decisão de criar um grupo de trabalho para continuar na UEFA foi, no mínimo, surpreendente. Isso porque há um prazo para essas questões serem resolvidas e a Rússia participar das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2026, visto que, em setembro, já tinha admitido ficar fora da Eurocopa 2024.

Amistoso da Rússia contra o Tadjiquistão, antiga república soviética
Amistoso da Rússia contra o Tadjiquistão, antiga república soviéticaRFU

"A transição (para a AFC) só é possível mediante uma carta da UEFA para a FIFA dizendo que não se opõe à mudança. Essa carta depende apenas do presidente da UEFA, não é preciso reunir nenhum Comitê. Não se sabe se isso já aconteceu ou se há conversas nesse sentido. É bem possível que haja uma hesitação em relação à posição da FIFA e ao fim da suspensão".

"A FIFA está numa posição perigosa. A Rússia está suspensa das competições internacionais, tanto de clubes quanto de seleções. E agora, só por mudar de confederação, deixa de haver risco de segurança? Qual é a justificativa? A FIFA vai ter de gerir bem essa situação", afirmou.

As consequências para Rússia e Europa

No meio de tanta incerteza, ao menos uma coisa é certa: caso a Rússia se mude para a AFC, os milhões de euros em patrocínios de empresas como a Gazprom seguem o mesmo caminho. 

"É de total interesse de países como China e Índia, que têm se mostrado favoráveis a esta mudança, que esse patrocínio vá parar na Ásia. Porque vai valorizar monetariamente as competições. Para os clubes russos pode ser uma situação meio estranha. É quase um retorno ao futebol soviético. Iriam encontrar adversários de outras repúblicas que pertenceram à União Soviética e reviver um passado recente", analisou. 

"Em termos de atrair jogadores reconhecidos para jogar nessas competições, isso pode causar alguns problemas aos clubes russos, sobretudo aos tradicionalmente europeus. Zenit tem neste momento Malcom, Claudinho, Wilmar Barrios, Wendel... é difícil que sejam atraídos para jogar na AFC Cup. É difícil convencê-los, a não ser pela parte monetária."

A nível interno, Joel Amorim não vê grandes mudanças. "A Rússia tem atualmente uma das melhores gerações de jovens", ressalta. Até ser suspensa, a seleção russa sub-21 estava em primeiro lugar do grupo das eliminatórias para a Euro 2023 e tinha vencido a Espanha. Por outro lado, a seleção principal só disputou três amistosos em 2022: com Uzbequistão (0x0), Tadjiquistão (0x0) e Quirguistão (vitória por 2x1).

Arsen Zhakaryan é um dos principais talentos jovens da Rússia
Arsen Zhakaryan é um dos principais talentos jovens da RússiaRFU

"Há muita qualidade nas categorias jovens da Rússia, e muitos deles já estão nas equipes principais porque há poucos russos jogando fora do país. A parte de atrair jogadores estrangeiros torna-se mais complicada. Neste momento continua havendo muitos estrangeiros, principalmente sul-americanos e dos Bálcãs. Se inicialmente houve muitos jogadores estrangeiros que aproveitaram a moratória da FIFA — que permitiu sair dos clubes ou suspender o contrato —, isso agora deixou de acontecer".

"Começaram a chegar até novos jogadores, mesmo para equipes sem grandes aspirações europeias. O Orenburg, por exemplo, consegue atrair estrangeiros. Há outros times, como Rostov, que optou pela segurança e não tem nenhum estrangeiro. E isso não impede que a equipe esteja bem, já que é a terceira colocada. O Rostov se precaveu para o que poderia acontecer, na eventualidade dos estrangeiros pedirem para sair. Construíram um time com russos para poder reverter essa situação".

Brian Mansilla, Lucas Vera e César Florentín (à direitra) são alguns dos sul-americanos no Orenburg
Brian Mansilla, Lucas Vera e César Florentín (à direitra) são alguns dos sul-americanos no OrenburgOrenburg

"A hipocrisia da FIFA"

Joel Amorim acusou a FIFA de hipocrisia em relação à decisão da suspensão das competições, pois em décadas anteriores se recusou a entrar em situações políticas, e tem ainda um histórico de promiscuidade com regimes autoritários ou que não respeitam os direitos humanos — conforme comprovado pelas duas últimas edições da Copa do Mundo (Rússia e Catar).

"A Rússia neste momento acaba sendo “refém” tanto de uma decisão da UEFA como da FIFA. Porque é uma decisão política — apesar de alegarem questões de segurança. E é curioso porque tem a mesma questão de 1973, quando a União Soviética (URSS) se recusou a jogar no Estádio Nacional do Chile, na segunda partida da repescagem para o Mundial de 1974, devido à ditadura de Pinochet (que transformou o estádio em um campo de concentração)."

Na época, os dirigentes do futebol soviético alegaram que não podiam jogar em um estádio "manchado com o sangue dos patriotas chilenos". Estima-se que cerca de 45 mil pessoas tenham sido detidas no local, algumas das quais vítimas de tortura e fuzilamentos. A FIFA reuniu uma comissão técnica para visitar o estádio e, segundo os relatos, viu os prisioneiros e deu seu parecer: "É possível jogar".

"Apesar de haver provas gritantes do que estava acontecendo, a FIFA permitiu que o jogo fosse realizado. A União Soviética não compareceu e foi punida com 2x0 (episódio conhecido como "jogo fantasma"). Aí a FIFA optou por julgar as coisas de forma diferente. Mas o princípio é o mesmo", 

Em 2022, a decisão foi diferente. Agora a FIFA pode continuar agarrada a essa decisão, não interromper a suspensão e permitir a mudança para a AFC. Ou, se encerrar a suspensão caso passem para a AFC, vai ter de explicar a decisão aos outros membros. É uma questão um pouco estranha. Imaginemos que uma equipa russa ganhe a Liga dos Campeões Asiática e vá ao Mundial de clubes (jogar contra clubes europeus)... A FIFA tem muito a explicar".

Jogadores russos à procura do próximo destino
Jogadores russos à procura do próximo destinoRFU

Para o analista de futebol russo, uma coisa é quererem manter a política fora do futebol, mas não da forma como a entidade fez na Copa de 2022, "em que ameaçou as seleções que se expressaram a favor dos direitos humanos"; outra coisa é "tomar uma decisão política de suspender a Rússia". Além disso, segundo Amorim, não houve tantas mudanças assim no conflito armado, que ainda deve durar bastante. Portanto, como a FIFA poderia justificar o fim da suspensão?

"O COI parece começar a ver as coisas de outra forma. Não são os atletas que mudam muito coisa, como também não são as equipes e a seleção russa. O poder político dos times de futebol e dos atletas olímpicos não existe. Não é com eles suspensos que vão mudar alguma coisa (no conflito). É um impasse difícil de se resolver", diz.

"É tudo um pouco hipócrita nessa história das razões de segurança, há outras seleções que nunca poderiam jogar umas com as outras. Há o exemplo da Armênia e do Azerbaijão, mas há também os Bálcãs. Israel está na UEFA, mas pode acontecer de jogar com o Egito ou Irã. Recentemente, a Sérvia jogou com a Albânia (em 2014). Nesses casos, em que ponto ficaríamos em relação às razões de segurança? Ainda pior que isso, a parte da recusa das outras seleções pode realmente ser uma situação de difícil resolução. Porque se a FIFA aceitou que os europeus não jogassem com a Rússia, terá de aceitar obrigatoriamente se uma seleção asiática o fizer também".

"Qual é o caminho? Continuar na UEFA e esperar que a suspensão termine? Se a guerra acabar, a Rússia pode jogar na UEFA? Talvez não. É uma situação muito difícil, que vai ficar no currículo de Aleksandr Dyukov como presidente da RFU", finalizou.

As dúvidas são muitas, e certeza só há uma: a Rússia, a FIFA e a UEFA têm uma dura missão para resolver até março.