OPINIÃO: FIFA celebra 120 anos sem reparar o maior crime da história do futebol
A entidade foi fundada em Paris no dia 21 de maio de 1904, por cartolas da Bélgica, Suécia, Suíça, Dinamarca, França, Holanda e Espanha.
Pouco menos de duas décadas depois, em 1921, já tinha força o suficiente para cometer uma barbárie: proibir o futebol feminino.
O boicote durou meio século e atrasou de forma irremediável a modalidade.
Por que a FIFA proibiu mulheres de jogar bola?
Durante a 1ª Guerra Mundial, os homens da Inglaterra foram para o front e a mulherada, para as fábricas. As trabalhadoras começaram a praticar o esporte, como foi comum para trabalhadores masculinos em indústrias ao redor do mundo, e o futebol feminino floresceu.
Elas passaram a se apresentar nos gramados britânicos inicialmente para arrecadar dinheiro para instituições de caridade que tratavam dos feridos da Guerra, mas à medida que os estádios enchiam, o negócio pegou.
Em 1917, nascia o primeiro torneio feminino da história: a The Mutionettes Cup (copa das “moças das munições”, em tradução livre).
O nome vem do fato de que quase todas as fábricas entre 1914 e 1918 passaram a produzir munição e armamento.
Um time passou a dominar o certame – algo como o Manchester City da época. Este esquadrão era o Dick Kerr Ladies FC, o time de uma fábrica de locomotivas (e munição) chamada “Dick, Kerr & Company Ltda” que ficava em Preston, norte de Liverpool.
O poder de fogo dessas senhoras não era brincadeira. O Dick Kerr ganhou 759 jogos, empatou 46 e perdeu só 28 em toda sua história.
A craque do time era uma ponta-esquerda chamada Lily Parr.
Conhecida por uma canhotinha de ouro que rachava as traves de madeira, Parr marcou em torno de mil gols na carreira, de acordo com o Museu Nacional de Futebol da Inglaterra.
Durante os anos de chumbo, os jogos das moças das munições enchiam os precários estádios da época.
Em 1920, o Dick Kerr Ladies FC derrotou a seleção da França por 2x0 diante de 25 mil pessoas no que foi o primeiro jogo internacional da associação feminina de futebol.
Mas o que parecia só alegria, virou um problema.
A Guerra havia acabado há dois anos, os homens já haviam voltado do front, mas o futebol feminino continuava atraindo multidões.
Em 26 de dezembro de 1920 (um Boxing Day no Reino Unido, dia de ver uma peleja), o Dick Kerr Ladies FC levou quase 70 mil pessoas ao Goodison Park, estádio do Everton.
Mais gente do que os 50 mil torcedores que foram ao clássico masculino Liverpool x Arsenal em Anfield no mesmo dia e na mesma cidade.
Mais gente também do que o público da primeira final da Copa da Inglaterra pós-1ª Guerra.
Este jogo do Dick Kerr só foi perder o título de recorde de público de futebol feminino em 2019, depois de 99 anos.
A partida histórica, que terminou Dick Kerr 4x0 St Helens Ladies, arrecadou mais de R$ 1 milhão em dinheiro de hoje para ex-combatentes desempregados e combalidos.
Foi o auge desta história gloriosa, porque no ano seguinte a FIFA entrou em ação.
Ciumeira gera boicote
Por entender que a liga feminina tinha virado concorrente da liga masculina (ou por pura ciumeira ou machismo mesmo, ou tudo junto e misturado), a cartolagem dos clubes ingleses fez lobby junto à Federação Inglesa, e em 1921 a Football Association (FA) aprovou a seguinte resolução – a transcrição é literal:
“O jogo de futebol é bastante inadequado para as mulheres e não deve ser encorajado. Por esta razão, o conselho solicita aos clubes pertencentes à associação que RECUSEM o uso de seus campos para tais partidas.”
A FA também proibiu seus membros de atuarem como árbitros e bandeirinhas em jogos femininos.
E havia um agravante bem sacana na medida: meninas também não podiam jogar bola nas escolas porque, na época, os colégios e universidades britânicas eram filiados à FA.
E como a Federação Inglesa era o membro mais poderoso da FIFA, a proibição virou internacional.
Já onipresente, a FIFA decidiu que qualquer de seus membros que permitisse que mulheres jogassem em seus estádios seria BANIDO da federação.
A proibição vigorou até 1971.
Uma rasteira irreparável
Diferentemente do que ocorreu com tênis, vôlei e tantos outros esportes, o futebol feminino foi boicotado e reduzido por 50 anos a mera “atividade recreativa”.
Não é à toa que a primeira Copa do Mundo Feminina só foi acontecer em 1991.
Nesta semana, em seu 74º Congresso, a FIFA anunciou o primeiro Mundial de Clubes Feminino para 2026.
Outras ações que a FIFA promete em seus "objetivos estratégicos" para 2026 são:
• Cada membro da FIFA deverá possuir pelo menos uma mulher em seus comitês executivos.
• Dobrar o número de federações com ligas juvenis, além de "expandir" o futebol nas escolas e academias
• O primeiro "Plano Comercial de Futebol Feminino".
Além de mais dinheiro e apoio para a Copa Feminina, a FIFA também já oferece apoio financeiro para as federações colocarem em prática projetos de desenvolvimento do futebol para meninas.
Uma das promessas que ainda não aconteceu é ter um terço dos membros do Comitê Central da FIFA composto por mulheres até 2022. Já estamos em 2024 e apenas seis dos 37 membros não são homens.
Sim, a FIFA tenta mitigar o boicote de 1921, mas para conseguir reparar o estrago que fez, precisa fazer muito mais.
Sem a proibição descabida, futebol feminino e masculino poderiam hoje estar em pé de igualdade como estão WTA e a ATP no tênis, por exemplo.
Como se conserta uma cagada deste tamanho?
Após a guerra, mesmo sem apoio e estádio para jogar, Lily Parr continuou atuando enquanto trabalhava como enfermeira em um hospital psiquiátrico de Preston.
Ela pendurou as chuteiras em 1951.
Em 2002, Parr virou a primeira mulher a entrar para o Hall da Fama do futebol inglês.
O legado e a luta de Lily Parr, de Marta, de Megan Rapinoe, de Mia Hamm, Britz, Formiga e muitas outras “moças das munições” é que têm de ser lembrados neste aniversário da FIFA.