OPINIÃO: Por que as pessoas amam rankings — e por que a Bola de Ouro é um delírio coletivo
Psicólogos, profissionais de marketing, a imprensa e as redes sociais sabem perfeitamente bem que listas e prêmios hierárquicos têm um apelo quase irresistível.
O cérebro humano evoluiu para escolher coisas, para se livrar do barulho e focar no que interessa; para organizar o mundo ao redor.
Escolhas eram (e são) vitais: eu como essa fruta silvestre ou aquela? Quais os animais mais perigosos da região?
Segundo a psiquiatra e escritora estadunidense Anna Lembke, hoje em dia temos mais tempo do que nunca para "ficar dentro de nossas próprias cabeças", e por isso as classificações ganham cada vez mais ibope.
Elas dão um sentido de organização e entendimento a um turbilhão de informações cada vez maior e mais caótico.
Em seu livro "Dopamine Nation", Lembke explica que o cérebro prefere dados já mastigados – em vez de ter de fazer todo o esforço – e afirma que essas listagens tipo "top 10" trazem tranquilidade mental.
O pesquisador Matthew Isaac, da Universidade de Seattle, garante que há um comportamento chamado de "Efeito Top 10", que é uma tendência das pessoas de agrupar as coisas em grupos de números redondos – e de descartar o que está fora deste grupo como algo inferior.
Premiações baseadas em rankings tocam em três áreas importantíssimas de estima das pessoas, que são: estima baseada no desempenho ("eu ganhei a corrida!"); estima baseada nos atributos sociais ("eu jogo no melhor time do mundo!"); e estima baseada na percepção dos nossos pares ("eles aplaudiram minha performance! Eu ganhei likes no meu post!").
"O que os rankings fazem é alimentar esses três tipos de estimas que a sociedade em que vivemos nos empurra", escreveu Mike Spivey, expert em educação e CEO de uma consultoria que justamente vende rankings para empresas.
Bem, e o que tudo isto tem a ver com a Bola de Ouro, cuja cerimônia nesta segunda-feira (28) premiou o meia espanhol Rodri e não Vinícius Júnior como "melhor jogador de futebol da última temporada"?
Vamos a uma lista de fatores que podem explicar por que damos bola para este tipo de prêmio, e também por que não devemos dar a mínima.
Primeiro, um ranking das razões pelas quais prêmios como esse são tão populares:
Top 5 por que amamos prêmios tipo Bola de Ouro
• 1) De acordo com neurocientistas ouvidos pelo Flashscore, há um consenso de que é natural da espécie buscar reconhecimento e excepcionalismo. Prêmios como a Bola de Ouro mexem com essas duas características
• 2) Ainda do ponto de vista da pessoa premiada, é também natural querer fazer parte da elite de sua área de atuação, e de fazer parte de um conto de fadas de sucesso. Estes prêmios fornecem os dois tipos de sentimento
• 3) Do ponto de vista da audiência, há uma fascinação por pessoas com as quais você se identifica, mas que, de alguma forma, também são escolhidas como especiais ou semi-deuses
• 4) Prêmios funcionam no cérebro como os rankings, no sentido de organização e hierarquização da informação
• 5) A mídia sabe que prêmios e rankings geram mais cliques – por tudo que já dissemos acima. Além disso, estas cerimônias geram conteúdo valoroso de bandeja, portanto são explorados até a última gota. Isto faz com que uma Bola de Ouro da vida ganhe imensa visibilidade – e infle em importância
Top 10 por que a Bola de Ouro é uma ilusão
• 1) Prêmios e rankings são condicionados, arbitrários e subjetivos. "É como casar com alguém porque seus amigos elegeram a pessoal tal a melhor de todas, mesmo que você não goste dela", escreveu Mike Spivey
• 2) Os rankings dão um descanso para o cérebro, mas podem ser prejudiciais. Eles podem te levar a tomar uma decisão errada, por exemplo. No caso da Bola de Ouro, a eleição de 10 atletas por votante pode eleger alguém fora do consenso ou fora do esperado
• 3) A Bola de Ouro premia uma peça em um esporte que é muito coletivo, e ainda tende a laurear atacantes. Qual o critério? Não há.
• 4) No caso de Vini Júnior, para muita gente a Bola de Ouro deste ano cumpriria um papel social, já que o atleta é bastião na luta anti-racista. No entanto, esta é uma expectativa irrealista para uma lista que apenas elege os "melhores jogadores" de uma temporada.
• 5) Como 99% das nacionalidades mundo afora, brasileiros têm necessidade de ser reconhecidos pelos pares mais poderosos. Faz 17 anos que um brazuca não é reconhecido como melhor futebolista do mundo, e por isso também a escolha de Rodri machucou muita gente no país de Vini. Mas a Bola de Ouro não é um reconhecimento do "mundo", e sim de 100 jornalistas aleatórios.
• 6) O futebol é cheio de politicagem. Com o crescimento do status do prêmio, não se pode esperar que a Bola de Oura esteja isenta de problemas ou rabo presos em sua eleição.
• 7) O painel de jornalistas não é uma comissão de notáveis à la Prêmio Nobel. O narrador Cléber Machado, único brasileiro na eleição da Bola de Ouro, conta que foi escolhido a esmo, em uma pelada informal com um colega francês. "Arnaud Pierre Courtadon trabalhava na Gazeta Esportiva e também para a France Football. Disse que a revista ia ampliar a votação e perguntou se eu queria votar pelo Brasil", lembra Cléber, que não é exatamente um especialista em futebol europeu.
• 8) Além de massagear o ego e o bolso dos jogadores, a Bola de Ouro só beneficia a France Football – uma revista de nicho que só é conhecida fora da França por conta do prêmio que ela inventou em 1956.
• 9) Até meados dos anos 2000, a mídia europeia tratava a Bola de Ouro como o "European Footballer of the Year". O prêmio é e sempre foi eurocentrista. Em 2010, a FIFA resolveu transformá-lo em algo mais global, antes de cair fora e criar o seu próprio em 2015. Este "boost" da FIFA e a criação de uma cerimônia pomposa e televisiva fizeram com que a Bola de Ouro ganhasse, de uma década para outra, um status ilusório de "Oscar global" do futebol.
• 10) O que vale no futebol é título, taça, Copas do Mundo. É isso o que move o esporte e seus torcedores.
Uma última questão: se o Camavinga, por exemplo, fosse favorito a "melhor do mundo" e perdesse na última hora para o Rodri, o Brasil não chiaria como está chiando. A psicóloga do COB (Comitê Olímpico Brasileiro) explicou ao Flashscore que o torcedor enxerga o atleta brasileiro lá fora como um representante dele mesmo, como um herói, como um soldado da pátria.
Quando este atleta é derrotado, o torcedor se vê derrotado também. Some-se a isso dois fatores: a nossa necessidade de ser visto/reconhecido lá fora e uma possível injustiça na escolha. Pronto, a receita do protesto em massa está dada.
No entanto, o Brasil – e também a Espanha – são incrivelmente bem-sucedidos no universo esportivo. Um prêmio de uma revista francesa não faz a menor diferença nesta narrativa.
E você não passa o ano inteiro sem dar bola para a France Football? Se no seu ranking o Vinícius Júnior é melhor que todos, não dê bola para a Bola de Ouro deles.